sábado, 1 de janeiro de 2022

Ocaso

 

Nós andávamos entre os muros esperando o temporal nos encobrir e impedindo que a rua ficasse vazia. Sem rumo definido, você tateava os arredores conforme mantinha a cabeça baixa e acompanhava seus passos sem dificuldade em transmitir graça. A maciez da ventania que estava pronta por ali nos penetrou a pele e nossos cabelos volviam-se nessa flanagem. Evitando com que eu me perdesse, uma espécie de apreensão, qual seja, sem objeto de alerta, me entranha. Impasse, um aperto distribuído em baixas doses. Bloqueio de toda ação. Adentramento colossal para fora de tudo que se via, e os pássaros, cinicamente, continuaram a chilrear.

Eu te olhava quando encontrara sua futura casa. Não duvidamos que a curiosidade nos agonizaria mais tarde caso não visitássemos o interior. Daí, saltada a mureta, fora afastada toda poeira acumulada. Ainda me recordo do ar distinto que respirei. Descemos alguns degraus; residia ali uma atmosfera preciosa e erma como tão raramente ocorre, dissociada de ímpetos. Agora, certamente desaparecida. Aniquilada. O calor se intensificou à medida que entramos e o teto prosseguia a subir e o interior a se expandir. A composição transpareceu-se, um ambiente lacônico com seus detalhes, ébano, me atravessou os poros a exclamação do modo como eu a contemplava. A morada lhe hipnotizava de modo que pôde finalmente confortar-se. Parecia, até lá, intocada há longos tempos, no ponto da vegetação se alastrando pelos cantos, mesmo que perfeitamente válida. Perambulamos um pouco; eu assoprei a poeira dos livros e você a dos móveis e uma suntuosa estátua de gesso sobre o criado-mudo.

Aquele arrepio amargo teria de ir embora eventualmente e a íntima sorte decidida; encurtava minha respiração e apertava minhas entranhas – sem a ação de qualquer ensejo, não existem meios para revertê-lo. Incorrida às forças do mundo, a sensibilidade esboça os efeitos de um encanto quebrado. Eu só conseguia lamentar o quão apoderado, vulnerável ela me tornava. Tibiezas parciais em meio àquela harmonia tão expansiva: um pecado contra este mundo. Havia-se de atestar-se sob tal…

As arestas delineavam os cantos, exceto os de uma extremidade ora inexistente, por onde os cabos vegetais adentravam. Cautelosamente nos aproximamos das ruínas e o lado externo revelou o caráter acropólico do que havíamos encontrado. Uma imensa janela – configurada pelos destroços do interior ora aberto ao mundo – fez com que desencolhêssemos. Dali era possível fitar as cordilheiras ao longe compondo o extremo do horizonte, abaixo de nuvens carregadas prontas para agredir a calmaria e acima de um chão absolutamente arborizado. Transportar-se a tamanha altitude fora instantâneo, e tudo quanto nos rondava soou como se tivéssemos saltado partes do caminho.

O sol não era plenamente visível. A luz de seu ocaso misturava-se com o cinza das nuvens empurradas pela força da brisa primaveril. Nós dois sabíamos que estávamos tendo o mesmo sonho. Toda a região nos era inédita e havia ora se colocado; em sua presença, me senti alheio a minha própria vida novamente. Aquela imensidão incendiou meus sentidos, abolindo ambos meu passado e futuro. Aliado ao silêncio e à senilidade dos céus, sob o princípio de seu espelhamento, um rio tecido de vitalidade, eu já estava adoecido… envolto em uma corrente de expressão conforme o vento sussurrava agudamente e o estrondo dos trovões inundava nossos ouvidos. Sob um lampejo, fui capaz de tatear a pureza da paisagem que lhe foi disposta e imanentizada, ainda que um aspecto de lucidez traga consigo o mesmo do luto, esse aperto inconfundível. Oco, carregado de vulnerabilidade. O temporal caiu e assim se esvaeceu. Incontentavelmente, conforme a vida não sente receio em erradicar as próprias belezas.

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Ineutralidade

Na etapa de seu surgimento, a vida, previamente à individuação e sua fundamentação sob os mecanismos ácido-nucleicos, ora substância pura, indignou-se com o inorgânico próprio ao mundo. Sob conturbações anônimas no processo de separação, ligações permanecem delimitadas e origina-se a interdependência mútua entre ambos os domínios que o pensamento entende por vida/morte e a intuição por sujeito/mundo. Seu triunfo sobre a matéria inanimada significou também sua derrota suprema, pela qual ainda sofremos diariamente junto a ela. O Universo não suporta grandes eventos, imprevistos, nenhuma novidade. Durante seus bilhões de anos, a inorganicidade reinou perfeitamente.

A ruptura gerada estabelece a dualidade: vivo (percepção, acesso) e não-vivo (objeto de acesso); enquanto esta representa uma relação interdependente na qual: em cada organismo, a realidade é fragmentada e, assim, se multiplica determinando novas uniformidades designadas e, esse mesmo, recorre ao recurso material ora inorgânico próprio à realidade para gerar sua possibilidade. Antes de retornar ao estado inorgânico (morte – evento no qual, idealmente, a substância da vida renuncia a uma ramificação em prol de novas [reprodução]), o organismo isomorficamente se multiplica e a vida prossegue. Sob seus devires particulares, vida e morte iniciam-se simultaneamente. A dualidade pressupõe um meio de expressão comum – situado em cada paralelo presente na realidade perceptual. Um produto organizado da natureza é aquele em que tudo é um propósito e reciprocamente também um meio.

A ineutralidade primeira que separou a vida do universo ainda vive em nós no instinto reprodutivo; em toda máquina que, distintamente, não apenas existe. Sob os seres-vivos não-racionais, seu processo de rompimento com o mundo não avançou tanto quanto o humano, ainda que ambos imbuídos do cogito particular1, neste reside a distinção de uma autoconsciência primária desenvolvida ainda em contato com o mundo; enquanto que, em relação ao homem, se permanece no estágio metaconsciente atual.

O nascimento primordial, i.e., a ruptura original, compartilha da mesma tristeza que experienciamos em nosso próprio. Quando percebemos, no nosso interior mais profundo, a dependência [suprema do mundo] que herdamos, do qual tentamos desesperadamente nos separar em definitivo e alcançar indiferença/independência. Chegando a criar mitos na busca (o maior deles, a civilização), tentamos ser indiferentes ao mundo mas ele jamais o será de nós. 

 

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Filhos de Gnon

 

No empuxo da vacuidade, uma espera intensa floresce, multiplica-se com o horizonte da cosmogonia inversa e o instante que todos os corações humanos se desintegrarão pela chama ardente do julgamento quando, em meio à dupla impossibilidade do início e do fim, a propínqua realidade residente em cada consciência acessa os solos do plano material ao passo abrupto em que todo desinteresse torna a tergiversar-se diante da possibilidade de largos frissons metafísicos. Quando percebida a tragédia de um atraso no momento mais derradeiro da paisagem, se encare de frente as dispersões e o afastamento diante de um estrondo proclamado pelo último suspiro no encerramento dessa cegueira universal. É fechado o canto de um universo e seus portões trancados pela boa magia da vida. Sem tempo para lamentações, é o que se segue… não há em mim sequer o nada, como não pode haver. A história precisa ser concluída e a flecha do tempo acertar seu alvo. Nostalgia caótica pelo perecer do homem; o homem, este que pode ser considerado o incidente mais significativo que a natureza conheceu, não poderia deixar de ser, pela força da ironia, o mais curto e ridículo… Sequenciam-se cenários de horror generalizado eufonizados pelo eco da voz humana em que ponho-me a contemplar contagiado pelo ímpeto de mil risos dilacerantes através dos quais, diante do momento final, será exprimida toda tensão, todo o drama e toda ferida que me fora acometida.

Ocaso

  Nós andávamos entre os muros esperando o temporal nos encobrir e impedindo que a rua ficasse vazia. Sem rumo definido, você tateava os a...